memorial para um ano novo e para um novo milênio (1999, 2000, 2001, 2003)

por Euler Sandeville Jr.
escrito originalmente em dezembro de 1999
atualizado em 28/11/2003

Alvorecer, no portal de um novo tempo.

Uma terra e um tempo sofridos ao extremo. Aterrorizada pelo próprio poder de ferir, de matar o inimigo. Coagida por esse mesmo poder a agir independentemente de qualquer significação. O espetáculo que assistimos é lamentável. Não há herói, senão aquele que destrói. Vingança ou justiça, não se trata disso nem para uns nem para outros, mas de ganância, intolerância e prepotência. O que resulta dessas bombas, como se pode marcar a diferença do horário em que o soldado ou o revolucionário é um matador, e quando é um pai?

Trouxemos para o século 21 o século 20. E não poderia ser diferente. As esperanças de uma sociedade global revelaram-se sombrias, mas isto não surpreendeu. As palavras perderam o sentido intrínseco e podem ser usadas para qualquer coisa, os discursos mudam como as modas. Tecnologia e barbárie dividem as telas, copiando impunemente as ruas.

O signo de esperança e liberdade da queda do muro de Berlim em 1989, revela sua face crua, dura, abominável, na “primeira guerra do século”, como está sendo chamada. Mudaram-se os jogos e condições, o modo de fazer guerra? Não interessa, aos ataques seguem-se orações, doação de comida e mortes. A polarização Nova Yorque – Cabul põe a descoberto os valores a partir dos quais estamos construindo o planeta para nossos filhos!

Eventos indicados no código de barras da cultura – 4555576869717274778996010812 no projeeto a natureza e o tempo (o mundo) , discriminados a seguir. Organização Euler Sandeville, 2007. Esta foto substitui aqui, por praticidade, algumas das fotos originais do artigo, as quais se encontram relacionadas no final da página.

A primeira guerra do século nos faz lembrar a primeira guerra do século passado, e de todos os outros. É tratada surpreendentemente como um aniversário de uma criança, como um episódio que marca um passo do desenrolar da história, que requer marcos. Mas que coisa pode crescer disso? Que criança é esta que estamos gestando ou educando? Sabem no que difere esta metáfora daquelas humanas que tememos nas ruas? É que aquelas de nossas ruas são ainda capazes de afeto, apesar de tudo o que não lhes restou!

Estamos criando um mundo sem afeto, sem abraço, sem amizade, governado pelas ambições do mercado, civilizado apenas por decreto, um mundo onde a ingenuidade enquanto pureza e a credibilidade das palavras chegam a passar por insanidade no círculo profissional. Não está, entretanto, a ameaça maior nas ruas, está em nossas casas, em nossas escolas, porque está nos lugares nos quais nós, e não outros, trabalhamos. Não podemos deixar esse mundo no escritório, nós o levamos para casa como se fosse natural. É ilusão fútil achar que não se apega em nossa alma, e não está em nós ao jantarmos, ao dormirmos, ao jogarmos bola. Se o aceitamos em uma parte do nosso dia como natural, ele devora noutra parte os sonhos, a segurança, a confiança.

O que criamos em nosso cotidiano nessas cidades em que vivemos essa tropicalidade prazerosa, que nos permita sentir longe das agonias e gritos de dor que assolam o planeta? Prazerosa, mas também cruel, como são cruéis as atitudes das nações.

Atingimos um marco que já nos pareceu distante. Quando chegamos a 1984 discutimos se havia acerto ou erro em Orwell e o atual portal nos parecia ainda remoto, embora fossem apenas 17 anos que nos afastassem da virada do milênio. Pois foram necessários apenas 6 anos para que se estabelecessem os marcos de uma nova época, mudando a maneira a que estávamos acostumados e, no entanto, os eventos da virada da década de 90 já nos parecem tão distantes no passado. Penso que estamos celebrando o tempo, o tempo todo fugindo do nosso tempo.

Agora que alcançamos esse portal até então distante, nos acercamos de um mistério que ameaça se desvendar. Talvez devêssemos nos sentir privilegiados, às portas de nos termos tornados cidadãos de um novo século e não apenas isso, de um novo milênio. Zeramos todos os contadores, começamos de novo: feliz 01, 02, 03, a partir de 2001! Integramos uma geração privilegiada e talvez assustada com a naturalidade clone (casual wear?) de Dolly. Podemos nos sentir irmanados a todos os grandes e lamentáveis marcos recentes da humanidade. As guerras étnicas, religiosas, os ataques especulativos às bolsas, as manchetes para vender notícias, …

Há cerca 500 anos, um novo mundo se descortinava sobre o pulsar dos oceanos, gigantesco, promissor, incerto (somos suas testemunhas e herdeiros) e, ao mesmo tempo, visto apenas como conquista e sentindo-se apto para praticar as brutalidades mais vergonhosas. Hoje nossas caravelas navegam entre os planetas do universo, e descobrimos um novo mundo interno, admirável e estranho, de uma globalidade virtual e de uma fragmentação individual exacerbada, de uma instabilidade premente sob pressão de todo o tipo de urgência.

Poucas vezes o sentido de continuidade foi tão forte: atravessamos lugares tão distantes e diversos, tornados tão próximos e homogêneos por todos os meios de circular imagens e pessoas. Já nem sentimos o espaço entre as cidades, transpomos realidades sem as tocar. Foi assim que me senti após partir de São Paulo à noite, dormir em Natal sem nem sequer ver a cidade, e acordar em Fernão de Noronha, a 300 km do continente: a imagem da ilha vista do alto e logo depois a bruma luminosa da manhã, o cheiro do ar, as paisagens nas quais mergulhei inebriado por poucos dias. Logo me percebi em meio a turistas superestimulados na continuidade paradisíaca e sensual de seu estresse cotidiano, não sei se estavam lá, ou, estando lá, estavam nos bares e casas noturnas (a pleno dia) de qualquer metrópole de onde vieram. Eu me vi distanciado por um imenso oceano do meu cotidiano e ao mesmo tempo numa continuidade quase instantânea em minha consciência entre coisas tão diversas, entre belezas tão díspares.

Pois agora atingimos um portal que nos coloca em uma continuidade milenar do que pensamos como civilização. É bárbaro isso, não é? Cada um de nós pode ser um pequeno saqueador das riquezas, tesouros, da alma de qualquer lugar, em qualquer tempo. Tão às portas, que já nos sentimos lá.

Poucas vezes os velhos e antigos sonhos da humanidade foram tão necessários: ética, amor, respeito, fraternidade, confiança, perdão, dedicação, contribuição, paixão, esperança, amizade etc. e, ao mesmo tempo, cada vez mais distantes.

Poucas vezes os terríveis pesadelos foram tão presentes, um estímulo tão permanente e ao mesmo tempo uma forma de prazer (não apenas nos acostumamos ao choque, à sua presença constante, mas temos prazer nele através de uma catarse fantasiosa, cinematográfica, cheia de endorfina e adrenalina, mas ao mesmo tempo distante): as ambições desenfreadas, as relações frias, a violência etc..

E, talvez o pior, se desejarmos os antigos sonhos da humanidade, pode parecer que estamos propondo (exceto se for apenas protocolo) um mundo anacrônico.

Pois bem, desejo a todos nós os antigos sonhos da humanidade: ética, amor, respeito, fraternidade, confiança, dedicação, contribuição, paixão, esperança, amizade, acrescidos da indispensável paz de espírito, de propósitos, de realizações, de relacionamentos, da saúde e da alegria. Que as lutas dos tempos que virão nos façam cidadãos que assistam e construam grandes conquistas, contribuindo com boas realizações. Que possamos ajudar a deixar uma herança mais rica e nobre aos nossos filhos e aos que nos sucedem. Será um portal longo, o qual nos cumpre dotar de beleza.

Ao celebrarmos a passagem para o século 21 durante este ano, celebramos também os mais de 500 anos de Brasil. Não seria correto dizer descoberta, pois nossa história ainda está por descobrir, por ser revista. Nosso presente também, no contexto dessas mudanças que celebramos implícitas na passagem do milênio, mas que, na verdade, nos capturam de um modo ainda despreparado em demasia. Não há nada de errado com a celebração, embora já nos pareça distante o início do ano imersos em tantas coisas como estamos. Mas devemos celebrar o cotidiano, pois é nele que seremos ou não criativos, faremos ou não diferença, e é preciso saber que, de qualquer modo, estaremos celebrando a esperança ou o cinismo.

Precisamos tanto dos sonhos quanto de uma visão nítida da realidade. Uma coisa sem a outra nos torna um barco à deriva de qualquer opinião, de qualquer palavra de ordem, de qualquer slogam publicitário, cúmplices daquelas coisas que muitos de nós não professariam partilhar, se pudessem.

Somos participantes, e já que é assim, cabe a esta geração definir qual o projeto criativo, e justo, para um presente pleno de desafios, tantas vezes perverso, mas por outro lado, ao mesmo tempo, tão instigante. A lamúria, a crítica mordaz e desenfreada, o ufanismo, o oportunismo podem estar em qualquer discurso e nos levarão a nada.

É necessário um espírito independente, com a coragem de perguntar em primeiro lugar a si mesmo, e também aos outros, qual o sentido do que estamos fazendo. A pergunta que tem acompanhado os debates sobre o país: “quem somos nós, brasileiros?”, mais uma vez nos desafia, enquanto cidadãos de uma Terra ao mesmo tempo global e fragmentada ao extremo. Desejo sorte aos espíritos que puderem permanecer livres nesse tempo, desejo felicidades a todos.

Um grande beijo, um grande abraço,

UMA BELA JORNADA PELO 21!

…MAS NÃO SERÁ FÁCIL.
um grande beijo!

Beijo, foto de Euler Sandeville, março de 2000

Euler Sandeville

FELIZ 02!

Terrafeto, criar as ideias para o século 21
Terrafeto, criar as ideias para o século 21, Animação de Euler Sandeville, provável 2001

Foto: Terra vista da Apolo 11 (fonte: site da NASA). Pense na Terra para entrar no SÉCULO

Créditos (fotos originais do manifesto, em sua maioria substituídas por outras nesta edição, que contêm algumas delas):
Fundo:, oceano em Fernando de Noronha (foto Euler Sandeville 1999)
Foto Terra vista Apolo 11, disponível em nasa.gov/, acesso em 13/01/2000
Presidente Bush com bandeira após ataque ao WTC, disponível em ig.com.br, acesso em 11/10/2001
Afegão do Al Qaeda, disponível em ig.com.br, acesso em 11/10/2001
Selo da 1 guerra do Século, IG, disponível em ig.com.br, acesso em 13/10/2001
Menino afegão, IG, disponível em ig.com.br, acesso em 13/10/2001
Ataque ao World Trade Center, disponível em uol.com.br/fsp/, acesso em 10/10/2001
Ataque ao World Trade Center, disponível em uol.com.br/fsp/, acesso em 10/10/2001
Muçulmano queima bandeira em protesto contra os EUA, disponível em uol.com.br/fsp/, acesso em 10/10/2001
Avião decola de porta-aviões norte-americano, disponível em uol.com.br/fsp/, acesso em 10/10/2001
Por de sol em Fernando de Noronha, foto Euler Sandeville 1999
Desenho papai Noel: Lucas Coelho Sandeville s/d
Beijo: imagem digital produzida por Euler Sandeville, março de 2000

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