memorial para um novo milênio (1999)

por Euler Sandeville Jr.
dezembro de 1999

Feliz alvorecer, no portal de um novo tempo.

Atingimos um marco que já nos pareceu distante. Quando chegamos a 1984 discutimos se havia acerto ou erro em Orwell e o atual portal nos parecia ainda remoto, embora fossem apenas 16 anos que nos afastassem dele. Pois foram precisos apenas 6 anos para que se estabelecessem os marcos de uma nova época, mudando a maneira a que estávamos acostumados, e no entanto os eventos da virada da década de 90 já nos parecem tão distantes no passado. Penso que estamos celebrando o tempo, o tempo todo.

Agora que alcançamos esse portal até então distante, nos acercamos de um mistério que ameaça se desvendar, que exige celebração. Talvez devamos nos sentir privilegiados, às portas de nos tornarmos cidadãos de um novo século e não apenas isso, de um novo milênio. Zeraremos todos os contadores, começaremos de novo: feliz 00, a partir do 2000! Integramos uma geração privilegiada e talvez assustada com a naturalidade clone (casual wear?) de Dolly. Podemos nos sentir irmanados a todos os grandes marcos da humanidade. Há 500 anos, um novo mundo se descortinava sobre o pulsar dos oceanos, gigantesco, promissor, incerto (somos suas testemunhas e herdeiros), e ao mesmo tempo visto apenas como conquista. Hoje nossas caravelas navegam entre os planetas do universo, e descobrimos um novo mundo interno, admirável e estranho, de uma globalidade virtual e de uma fragmentação individual exacerbada, de uma instabilidade premente sob pressão de todo o tipo de urgência.

Poucas vezes o sentido de continuidade foi tão forte: atravessamos lugares tão distantes e diversos, tornados tão próximos e homogêneos por todos os meios de circular imagens e pessoas. Já nem sentimos o espaço entre as cidades, transpomos realidades sem as tocar. Foi assim que me senti após partir de São Paulo à noite, dormir em Natal sem nem sequer ver a cidade, e acordar em Fernão de Noronha, a 300 Km do continente: a imagem da ilha vista do alto e logo depois a bruma luminosa da manhã, o cheiro do ar, as paisagens nas quais mergulhei inebriado por poucos dias em meio a turistas superestimulados na continuidade paradisíaca e sensual de seu estresse cotidiano. Eu me vi distanciado por um imenso oceano do meu cotidiano e ao mesmo tempo numa continuidade quase instantânea em minha consciência entre coisas tão diversas, entre belezas tão díspares.

Pois agora atingimos um portal que nos coloca em uma continuidade milenar do que pensamos como civilização. É bárbaro isso, não é? Cada um de nós pode ser um pequeno saqueador das riquezas, tesouros, da alma de qualquer lugar, em qualquer tempo. Tão às portas, que já nos sentimos lá.

Poucas vezes os velhos e antigos sonhos da humanidade foram tão necessários: ética, amor, respeito, fraternidade, confiança, dedicação, contribuição, paixão, esperança, amizade etc. e, ao mesmo tempo, cada vez mais distantes.

Poucas vezes os terríveis pesadelos foram tão presentes, um estímulo tão permanente e ao mesmo tempo uma forma de prazer (não apenas nos acostumamos ao choque, à sua presença constante, mas temos prazer nele através de uma catarse fantasiosa, cinematográfica, cheia de endorfina e adrenalina, mas ao mesmo tempo distante): as ambições desenfreadas, as relações frias, a violência etc..

E, talvez o pior, se desejarmos os antigos sonhos da humanidade pode parecer que estamos propondo (exceto se for apenas protocolo) um mundo anacrônico.

Pois bem, desejo a todos nós os antigos sonhos da humanidade: ética, amor, respeito, fraternidade, confiança, dedicação, contribuição, paixão, esperança, amizade, acrescidos da indispensável paz de espírito, de propósitos, de realizações, de relacionamentos, da saúde e da alegria.

Presenciamos um momento digno de celebração e devemos nos envolver nessa maravilhosa exultação. Que as lutas do ano que entram nos façam cidadãos que assistam e construam grandes conquistas, contribuindo com boas realizações. Que possamos ajudar a deixar uma herança mais rica e nobre aos nossos filhos e aos que nos sucedem. Será um portal longo, o qual nos cumpre dotar de beleza.

Ao celebrarmos a passagem para o século 21 durante este ano, celebramos também os 500 anos de Brasil. Não seria correto dizer descoberta, pois nossa história ainda está por descobrir, por ser revista. Nosso presente também, no contexto dessas mudanças que celebramos implícitas na passagem do milênio, mas que, na verdade, nos capturam de um modo ainda despreparado em demasia.

Somos participantes, e já que é assim, cabe a esta geração definir qual o projeto criativo, e justo, para um presente pleno de desafios, tantas vezes perverso, mas ao mesmo tempo tão instigante. A pergunta que tem acompanhado os debates sobre o país: quem somos nós, brasileiros?, mais uma vez nos desafia, enquanto cidadãos de uma Terra ao mesmo tempo global e fragmentada ao extremo.

Um grande beijo, um grande abraço,

Beijo, foto de Euler Sandeville, março de 2000

um grande beijo!

Euler Sandeville

FELIZ 20!
UMA BELA JORNADA AO 21!

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